sábado, 20 de junho de 2009

E depois do «Ano paulino»?

[Eis um resumo da Conferência do Padre Armindo Vaz, que ele proferiu no nosso Convento, no passado dia 18, Quinta-feira, no âmbito das Noites do Carmo - fórum de reflexão e de formação cristã. Muito lhe agradecemos a sua disponibilidade e alegrias cristãs para partilhar connosco muito do seu saber e reflexão. Deus lhe pague.]

A Igreja viveu intensamente o Ano Paulino. Dioceses, paróquias, centros de estudo, instituições eclesiais, mobilizaram-se no sentido de conhecer melhor e dar a conhecer mais o que S. Paulo supôs na formação do cristianismo primitivo e o alcance que teve para toda a vida da Igreja, desde sempre até hoje. Organizaram-se congressos, simpósios, semanas bíblicas, ciclos de conferências, debates, mesas redondas, a nível académico, científico, pastoral e espiritual. E depois de todas estas realizações? Durante o Ano Sacerdotal que se segue, do 19.6.2009 até ao 19.6.2010, o trabalho realizado deverá continuar, para manter a Igreja atenta à importância espiritual e pastoral de Paulo, tanto mais que ele é grande modelo para os sacerdotes, enquanto apóstolo de Jesus Cristo, conhecedor do seu mistério e da unicidade da sua pessoa na fé cristã, anunciador da Palavra como ninguém no cristianismo. Na sua reflexão da fé, a Igreja não pode omitir pontos nevrálgicos que provêm da espiritualidade de S. Paulo. Apontamos aqui três dos mais importantes, que, aproveitando a boa onda de entusiasmo e fervor provocada pelo Ano Paulino, devem ser aprofundados.

1. O Espírito Santo, o grande esquecido
Numa página memorável, em 1Cor 12, Paulo pede atenção àquele que ainda hoje é o grande desconhecido da sociedade e o esquecido da vida cristã: o Espírito Santo.
Quem é ele? Não é uma entidade ao lado de Deus. É Deus em estado de comunicação a nós. No Novo Testamento, é o Pai e o Filho em Espírito, porque Jesus se tornou ele próprio “Espírito que dá vida” (1Cor 15,45). Por isso, Paulo fala do “Espírito de Cristo” (Rm 8,9), do “Espírito do Filho” (Gl 4,6) e do “Espírito de Jesus Cristo” (Fl 1,19). O Espírito de Deus torna Jesus novamente presente na comunidade dos seus seguidores (1Cor 12,1-3). Isto significa, não só que Deus Pai se tornou visível no Filho, mas também que o Filho actua por meio do seu Espírito, que é o Espírito que recebeu do Pai. O Espírito completa o círculo de amor inerente ao próprio ser de Deus, de Deus que é Amor. Se queremos conhecer a forma como Paulo entende o relacionamento do cristão com Cristo e com o Espírito, podemos dizer com palavras suas: nós “estamos em Cristo”; “o Espírito está em nós”. Por isso, Paulo pôde dizer que o cristão é templo do Espírito de Deus, habitado pela sua energia vital.
Em 1Cor 12, Paulo fala da diversidade de dons/carismas pessoais, que enriquecem a comunidade de fé. Segundo Paulo, os talentos e qualidades humanas, vistos como dons do Espírito, promovem a harmonia e a unidade da Igreja. Todos são necessários, ninguém é dispensável, desde o cuidar do asseio e da decoração da igreja até aos ministérios ordenados que presidem à vida da Igreja na caridade.
Comunicando o seu Espírito, Deus dá a força de amar e os meios para manifestar esse amor. O amor impregna de sentido tudo o resto: concretiza-se no serviço dos carismas. De facto, é interessante notar que Paulo não fala do carisma do amor. Mas no fim do seu discurso sobre os carismas do Espírito, liga-os todos ao amor: “aspirai aos dons/carismas mais valiosos! E ainda vos vou mostrar um caminho mais excelente”: o do amor (que vem a seguir, no capítulo 13). Não admira, pois, que Paulo, quando enumera o fruto do Espírito, ponha em primeiro lugar o amor: “O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si próprio. Contra tais coisas não há lei” (Gl 5,22-23). Repare-se que as virtudes que Paulo enumera como fruto (no singular!) do Espírito não são atitudes ou acções separadas: constituem uma maneira única de viver sob a influência do Espírito.
As pessoas que nos conhecem precisam de sentir a verdade. Mas também precisam de ver o amor. Ficarão convencidas se nos vêem envolvidos nas causas da justiça, da bondade, da solidariedade, da defesa dos valores da família, da pacificação da sociedade. Para isso, temos de aprender sempre de novo a correr o risco de ser bons. Temos de afinar a fé, sentindo-nos tocados pelos dons do Espírito, tornando-nos interiormente «bons» e tendo a generosidade de descobrir o serviço que nos é pedido no nosso ambiente e na nossa comunidade.
É, por isso, importante atender ao pedido de Paulo: “não apagueis o Espírito” (1Tes 5,19); “não ofendais o Espírito Santo de Deus” (Ef 4,30). De facto:
Sem o Espírito Santo,
Deus está longe,
Jesus Cristo fica no passado,
o evangelho é letra morta,
a Igreja, uma simples organização,
a missão, uma propaganda,
o culto, uma evocação histórica,
o agir cristão, uma moral de escravos.
Mas, com o Espírito Santo e em sinergia indissociável com ele,
Cristo ressuscitado está presente,
o evangelho é uma força que dá vida,
a Igreja significa comunhão de vida,
a autoridade, um serviço libertador,
a missão, um novo Pentecostes,
a liturgia, um memorial e uma antecipação,
o agir humano é divinizado [1].

2. Paulo, inspirador de diálogo ecuménico
O Ano Paulino, pelos muitos encontros ecuménicos que puseram os cristãos a reflectir no que S. Paulo diz a todos, foi também uma oportunidade para imprimir ao diálogo ecuménico novo impulso e novo entusiasmo, para olhar para a grande meta que é a unidade visível da Igreja. É uma questão que está cada vez mais sob a atenção do mundo da cultura e também da direcção da Igreja católica. A essa junta-se agora a do diálogo inter-religioso. A globalização galopante abre um caminho fascinante e complexo ao aprofundamento da relação entre as religiões do mundo, até como factores decisivos para a paz entre as nações. Ora, tanto no ecumenismo como no diálogo inter-religioso Paulo tem muito a dizer, como modelo inspirador.
Vivendo num ambiente em que as igrejas cristãs nascentes eram muito diversas entre si, lutou por um cristianismo inclusivo. Face à diversidade cultural, propunha a centralidade de Jesus Cristo. A de Paulo foi uma batalha a favor da inclusão, contra a exclusão de quem quer que fosse. Considerando Jesus como o «novo Homem», protótipo de uma nova humanidade, Paulo deu à nova fé horizontes de universalidade.
Isso também resulta do seu entendimento da Igreja e da salvação. Nunca chama cristãos ou discípulos aos fiéis de Jesus. Chama-os “irmãos” (112 vezes) e “santos” (25 vezes). “Irmãos” põe em destaque a dimensão familiar da nova comunidade. “Santos” acentua a sua dimensão sacral, enquanto distinta do mundo e da moral. Distinção que não é só de sociologia religiosa, mas de ideia sobre o ser humano. A razão fundamental está em que os baptizados não constroem nem conquistam a própria santidade com esforço moral: são “santificados” (1Cor 1,2), são justificados, perdoados, redimidos, resgatados, libertados, reconciliados… por dom de Deus.
O coração do ecumenismo é o ecumenismo espiritual, um impulso do Espírito de Jesus Cristo. A unidade da Igreja não se compõe com regra e esquadro à escrivaninha. É um dom, que só pode vir do Espírito de Deus, porque só nele encontramos o ponto de encontro comum a todos, no qual nos possamos dizer irmãos. As iniciativas a tomar no movimento ecuménico produzirão fruto se são geradas da união com Cristo. Ora, precisamente nisto S. Paulo dá cartas a todos: “todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Os que fostes baptizados em Cristo revestistes-vos de Cristo: já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,26-28). O texto mais interessante neste sentido é Ef 4,1-7.11-13, que convém ler e meditar.

3. “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou”
Paulo, cidadão romano livre (“não sou eu livre?”: 1Cor 9,1) chegou prisioneiro à capital do mundo livre, Roma. E foi para os Romanos que lançou o mais alto grito de libertação e de liberdade, que continua a ecoar entre nós hoje como um dos temas mais importantes da sua mensagem:
O pecado já não tem domínio sobre vós, pois não estais sob o poder da Lei, mas sob o império da graça… Graças a Deus, vós que éreis escravos do pecado…, libertados agora do pecado, pusestes-vos ao serviço da graça da justificação (6,14-19).
Vós não recebestes um Espírito de escravos para recair no medo, mas recebestes o Espírito de filhos adoptivos, por meio do qual clamamos: Abbá, Pai! (8,15).
No maior debate cultural e religioso que Paulo travou no coração do mundo de então, a liberdade levanta-se como definição da existência humana e clave de interpretação da vida cristã: “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). As suas cartas são a carta magna da liberdade de pensamento e de expressão. Fundamentam-na na base da dignidade humana, que é o amor de Deus incondicional e indestrutível:
Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Aquele que não poupou o próprio Filho, antes o entregou por todos nós, como não nos dará de graça todas as coisas? Quem acusará os eleitos de Deus? Deus é quem perdoa. Quem os condenará? Porventura Jesus Cristo, o que morreu, mais ainda o que ressuscitou… o mesmo que intercede por nós? Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição…? Estou convencido de que nem a morte nem a vida…, nem criatura alguma poderá separar-nos do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo, Senhor nosso (Rm 8,31-39).
“O cristianismo começou por ser um delito de opinião que custou aos seus protagonistas a prisão e a morte. Mas o «delito cristão» não cessou de ser, como sabemos, um extraordinário impulso para a libertação do Homem e da História” [2]. É na liberdade que decisivamente se joga a essência do humano. Ela é “valor inegociável, necessariamente articulado com a Verdade, o Bem e a Beleza” [3]. A espiritualidade de Paulo põe no fio da navalha o grau de pureza e de exigência para a liberdade que queremos e para aquilo que queremos que a liberdade faça de nós. A liberdade que ele apregoa é sublime. E não é libertinagem, nem cede à irresponsabilidade. Parte da consciência de filhos de Deus e traduz-se na responsabilidade e no compromisso de vida:
Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Mas não tomeis essa liberdade como pretexto para ceder à debilidade humana [a carne]. Ao contrário, por meio do amor estai ao serviço uns dos outros. De facto, a Lei inteira atinge a sua plenitude num único mandamento: o de amar o teu próximo como a ti mesmo (Gl 5,13-14).
Irmãos, não somos filhos da escrava, mas da mulher livre (Gl 4,26.31).
Para Paulo, a liberdade cristã consiste em deixar-se conduzir pelo Espírito de Jesus ressuscitado: “Onde está o Espírito do Senhor aí está a liberdade” (2Cor 3,12-18). “Se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da Lei… Se vivemos pelo Espírito, deixemo-nos conduzir pelo Espírito” (Gl 5,18.22-25). “Agora já nenhuma condenação pesa sobre os que estão em Cristo Jesus, porque a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,1-2).
A liberdade cristã é liberdade na verdade. Mas, em definitivo, só o amor nos faz livres. O exercício da perfeita liberdade é o amor, é “fazer a verdade na caridade” ou “sendo verdadeiros por meio do amor”, como pede Paulo aos Efésios:
Quando chegarmos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem adulto, à medida completa da plenitude de Cristo…, deixaremos de ser crianças, batidos pelas ondas e levados por qualquer vento de doutrina, ao sabor do jogo dos homens, da astúcia que maliciosamente leva ao erro. Ao invés, testemunhando a verdade por meio do amor, cresceremos em tudo para aquele que é a cabeça, Cristo (Ef 4,13-15).

Conclusão
Estes três temas paulinos estão intrinsecamente unidos entre si. O Espírito de Jesus ressuscitado é o motor da unidade dos cristãos e o promotor da liberdade cristã. «E depois do Ano Paulino?» - É imperioso continuar a ler S. Paulo, agora mais do que até aqui e com a consciência da sua importância para uma vida cristã em profundidade e esclarecida. Ele é o autor bíblico mais lido na liturgia da Igreja. E esse pode ser um fruto do Ano Paulino. Nas suas frequentes aparições na liturgia da Palavra, atenda-se à emoção e à rendição do apóstolo ao amor mais gratuito, que lhe dizia respeito: “Vivo na fé do Filho de Deus que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20).
[1] Patriarca Inácio IV de Antioquia, em 1968, na Suécia. Referido por R. de ANDRÉS, Diccionario existencial cristiano (Verbo divino; Estella 2004) 162-163.
[2] Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, em Agência Ecclesia, nº 1197 (26.5.2009) 7.
[3] Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, em Agência Ecclesia, nº 1197 (26.5.2009) 7.
Pe Armindo dos Santos Vaz, ocd

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