sábado, 23 de janeiro de 2010

Quando um membro sofre, todos sofrem com ele

E agora o Haiti não nos sai da cabeça. As imagens acumulam-se sobre imagens, e os relatos sobre relatos. Creio firmemente que somos poupados ao pior de tudo, ao pior horror. Ainda assim contemplamos a tragédia como quem a esconjura para longe, como quem procura afastar os nevoeiros dum sonho mau.
Depois do abalo que fez ruir os prédios e os palácios e deixou erguidas as barracas mais pobres, a audácia maior era a de escapar com vida, e a tragédia maior o socorro e amparo dos sobreviventes.
Doem-me mil feridas que se remultiplicam na tragédia dos sobreviventes. Dói-me o Haiti. E oxalá a dor continue a doer, e jamais alguma foleirice obnubile aquela rasgão que demorará anos a curar.
O Haiti é um membro sofredor; cabe ao resto do corpo — a comunidade internacional, a comunidade dos cristãos —, condoer-se com as dores daquele membro. E sará-lo.
É o que diz hoje a segunda leitura da Missa tirada da primeira Carta de Paulo aos cristãos de Corinto.
Em cem segundos um país mudou. E poucos foram os que no corpo nada sofreram. Mas a tragédia acabou tocando a todos, marcando-lhes a alma, arranhando-lhes os sonhos, torcegando-lhes os sentimentos.
Quão fina é a linha entre a vida e a morte!
Todos sofremos no Haiti. Um corpo não sobrevive muito tempo com um membro estroncado e paralisado. O que dói no Haiti a todos dói.
O Santo Padre já confirmou: morreram o bispo de Porto Príncipe, muitos sacerdotes, religiosos e religiosas e muitos seminaristas. Para além de figuras de Estado, do pensamento e das artes, do voluntariado internacional, da classe média e de todas as classes. As quase inexistentes estruturas civil, política e administrativa também ruíram. Quando se dá um tão grande recuo da capacidade de intervenção da vontade humana quase só resta Deus: «Agora no Haiti manda Deus», gemeu desamparado um popular.
Seja, mas sinceramente não sei que coisas pensarão os haitianos quando este domingo forem à Missa. Como enfrentarão eles a Palavra de Deus quando escutarem a proclamação do Evangelho:«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos; um ano favorável da parte do Senhor»?
Para eles já será boa notícia se tiverem de comer, se souberem que amanhã alguém lhes trará farinha e água. Que dentro de algum tempo vão reganhar a vida voltando ao trabalho. E ter um tecto que os cubra. Como enfrentarão eles, tão doridos e tão sem nada, a certeza de Jesus: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir»?
Jesus confirma que a Escritura se cumpre no hoje da vida das pessoas que O ouvem! Mas, como será precisa a fé e a disposição para ver a vida com olhos de haitiano — isto é, vê-la ao contrário do que ela é quando é serena e ordenada —, vê-la com os olhos de Jesus para ver que a Escritura se cumpre! Sim, soará muito estranho neste domingo aos cristãos haitianos ouvir o texto que o profeta Isaías escreveu 500 anos antes de Jesus o ler e comentar na sinagoga de Nazaré. Séculos depois Jesus soube actualizá-lo para o hoje do seu tempo, porque serviu os pobres, os cativos e os cegos e assim traduziu a Boa Nova em vida: o seu serviço foi anúncio libertador para aquele hoje.
Hoje Jesus traz a promessa do cumprimento da boa notícia do Evangelho também para o destroçado Haiti, e menos para quem tem barriga cheia e não precisa de Boa Nova e por isso não a ouve nem a quer ouvir. Jesus insiste que a Escritura se cumpre nos ouvintes que O ouvem. Porque o Espírito O ungiu e O enviou para libertar. O cumprimento da Escritura é a própria pessoa de Jesus. Ele é a graça, a libertação e a consolação. Por isso, acreditar Nele é dar já hoje cumprimento à Escritura. Quando a Escritura fala fala Cristo, Ela é a Palavra de Deus que se fez carne em Jesus. É Nele que se acha a realização da Escritura. Ele é o desejo de Deus se nos comunicar, por isso, hoje, Ele chegará como pão, água, bênção e cura.
É domingo, o dia do Senhor. Em todo o mundo de matriz cristã renovaremos o memorial de Jesus. Uns celebraremos confortavelmente a Eucaristia, outros celebrá-la-ão no desgarro da tragédia e das ruínas. (E não apenas no Haiti) Hoje é domingo para todos, dia em que a Palavra de salvação se cumpre. Todos somos corpo de Cristo, no qual coexistimos unidos e diversos.
Em cada Missa nós vamos construindo o corpo de Cristo. Ele continua vivo, crescendo presente no mundo, actuando e libertando. Vamos colaborar, vamos reconstruir porque quando um membro sofre todos sofremos com ele.
Chama do Carmo I NS54 I Janeiro 24, 2010

1 comentário:

Ricardo Igreja disse...

Vitórias e derrotas ATAPETAM a trajetória humana.Ganhar e perder fazem parte do cotidiano.ATÉ PERDENDO É POSSIVEL GANHAR.São os paradoxos da vida.Nem sempre o triunfo é benéfico,salutar.Há lições que só a DERROTA e o FRACASSO ensinam.Haiti... A rigor o cristão não fracassa nunca. Ele APRENDE,CRIA EXPERIÊNCIA. O filho pródigo amou mais seu pai,após a ingratidão filial,no seu regresso contrito a casa paterna.Até o pecado é graça,se nos coloca mais perto de DEUS.É tão misteriosa e comovente a pedagogia da misericórdia divina!Sem a estrada de Damasco-Saulo perseguindo os cristãos-talves não tivesse nascido o grande Apóstolo Paulo,apaixonado por Cristo e pelo Evangelho.Aos irmãos em Cristo,com o exemplo do Haiti,este membro sofrido,ganhamos,perdendo.O único fracasso verdadeiro é aquele no qual não aprendemos NADA.