sábado, 13 de fevereiro de 2010

Vamos queimar os navios?

Se no dia seguinte ao Carnaval alguém entrar numa igreja em hora de Missa o mais certo é levar para casa uma cruz na fronte. Uma cruz negra, de cinza, feita com os ramos de oliveira e palma do Domingo de Ramos do ano anterior. A Quarta-feira a seguir à folia é um embate duro com a realidade. Começa ali a Quaresma, cujo nome deriva da expressão latina quadragesima dies, ou seja, quarenta dias. Quarenta dias é o período do Ano Litúrgico que ali começa.
A cerimónia das cinzas revela-nos o pouco que somos e que um só é eterno, Deus! Ele é o fogo purificador de todo o excesso. E excesso de nada é o que somos o mais das vezes. Desarraigar todo o lastro excessivo da nossa vida e semear lá um jardim essa é a proposta de Deus. Vamos queimar os navios?
Assinalar com uma cruz significa dizer pertença, de quem se é: d’Aquele que morreu na Cruz! E se a cruz que nos marca a fronte é de cinza escura, mais nos assinala a fragilidade que nos constitui.
Se ao cruzarmos a fronteira do reino da fantasia nos deixamos assinalar assim, então concordamos que somos bastante falsos, tão fracos como a cinza e que em nossa vida há muito a queimar até se chegar ao osso da verdade que nos fundamenta.
A marca da cruz é a nossa bandeira; a cinza é nossa condição certa. Os que com alguma coragem uma vez ao ano ainda nos banhamos na ria da humildade reconhecemos isso mesmo!
As cinzas com que nos aspergimos nem precisam de falar para dizerem a vida tonta que somos. Há em nós tanto para queimar que se nos dispuséssemos a queimar o que haja de queimar – com aquela mesma vontade com que bebemos chás e remédios para abater gramas de celulite no corpo e colesterol no sangue –, como seríamos mais leves, mais santos, mais de Deus, melhor Igreja, mais ágeis e sinais mais belos e mais visíveis no caminho da fé e da caridade.
Receber as cinzas é um convite a fazer queimadas. Veja as coisas que a queimar dariam belas fogueiras:
1. As máscaras e as fitas
Afinal talvez não haja dia mais sincero que o Carnaval. Tirando o facto da euforia do Carnaval ser por si só comercial e inverdadeira – e impingida a bom preço! – pouco mais é verdadeiro para além da máscara. Uma máscara é o que todos os dias colamos à cara, fazendo crer socialmente quão feliz é a nossa vida! O rictus que exibimos é a toga que vestimos para sentenciarmos, a fim de que creiam o que afinal não é. O à-vontade com que colocamos a máscara do Carnaval só ajuda a que reparem na que usamos de ordinário. Por sua vez, os rolos de fitas coloridas dizem isso mesmo: que a alegria é tão passageira como o desenrolar dos rolinhos sobre as cabeças. Queimar as imitações e fingimentos quotidianos dá uma boa fogueira e proporciona boa cinza que nos chama à verdade da vida e das relações.
2. As injustiças
Não haja dúvida que a nossa vida ainda decorre sob o signo da temperança e da lealdade, da retribuição e da justeza das coisas. Estes ainda são valores que nos fundam. Mas queiramos ou não vivemos em comunidade alargada, internacional. É impossível não pensar que vivemos num mundo de consumo e abundância que condena milhões de pessoas à fome e à morte, pois deu mais valor à posse de bens que à vida humana. Há quem veja a pirâmide social constituída por uma grande base faminta e despida de direitos, depois os que trabalham seguidos dos que se refastelam, os que comem por todos, até que no cume fica a saca do dinheiro, o deus do mundo. E os de baixo movem a roda e voltam a movê-la, a fim de que o dinheiro dê mais dinheiro a quem já tem tanto dinheiro!
Se alcançássemos a comunhão de bens far-se-ia justiça, embora tivéssemos de queimar muitas coisas. Mas que cinzas mais fecundas daí sairiam!
3. Os navios
Contam que Cortez, o conquistador espanhol, pouco depois de desembarcar na América do Sul mandou queimar os navios. Estranha lucidez, pois havia um oceano a atravessar para regressar a casa. É certo que podemos criticar as conquistas de Cortez e a forma como as realizou, mas este gesto é, sem dúvida, valioso. Bem conhecia ele a extrema dificuldade da tarefa que perseguia. Sabia que viriam perigos incontáveis, terrores, mortes, doenças. Temia o desconhecido, que se afigurava pavoroso. Conhecia os seus homens e conhecia-se a si mesmo. Receava que – depois de uma derrota, perante o desânimo provocado por algum obstáculo aparentemente intransponível – pensassem apenas na forma mais rápida de chegar de novo à costa, entrar nos barcos e regressar a casa. Mas não admitia outra coisa senão cumprir o objectivo. Cortou a retirada. E os navios arderam. O único caminho, a partir de então, era em frente e até ao fim. E conseguiu. Que belas cinzas!
Vamos começar a Quaresma. Por uma vez, talvez devêssemos ser corajosos: tomar decisão de fechar as portas à possibilidade de bater em retirada. É hora de nos atirarmos de vez às coisas de Deus, sem corar diante do mundo e sem nos atrapalharmos, ainda que o mundo nos condene; e até mesmo sem querer que Deus nos veja e nos pague.
Vai começar a Quaresma. Por si só é uma graça e um prémio. Vamos começá-la com a imposição das cinzas. Seria óptimo que viessem da combustão das nossas seguranças e injustiças: vamos queimar os navios?
Chama do Carmo I NS57 I Fevereiro 14, 2010

1 comentário:

Ricardo Igreja disse...

Eu corro...Almoço,trabalho,passo e não
o vejo;Grito,canto,choro,mas nunca o
chamo;Tenho tudo mas não o dou nada,
sinto dor,nojo,amor,sinto tudo menos a
sua presença;Ouço,vejo,como,tenho sentidos perfeitos,mas não os usos para sí;Sou inteligente mas não sei nada de sí,fico feliz mas não participo,conheço tanta gente importante,mas não o conheço;Faço tudo que os outros pedem,mas não faço a sí o que me pedes com humildade;Digo que não tenho tempo para nada e nem sequer penso em sí,quebro tantos galhos para outros,mas sequer tiro um espinho da tua testa;Reclamo tanto da vida e sequer sei que a sua vida é triste por minha causa;Entendo de todas as transações do mundo,mas não entendo a sua mensagem;Quando um superior grita abaixo os olhos,mas sou incapaz de os levantar quando me falas do teu amor;Eu defendo o meu clube predileto,aquela pessoa que acho bonita,mas não te defendo junto dos amigos.Eu não me envergonho de me despir diante de algém...Mas tenho vergonha de tirar a máscara... diante de tí.Eu corro com meu carro,bicicleta,pernas,e não corro para os teus braços.É...eu sou um corpo no mundo.Tú és um mundo no corpo!Tú és alguém que todos os dias bates a minha porta e perguntas: - Tem lugar pra mim na tua casa,na sua vida...no seu coração?ESTÁS PRESENTE EM TODAS AS COISAS E EM TODOS OS LUGARES...ÉS, JESUS CRISTO;
O QUE TU QUERES É QUE SIMPLESMENTE TE ACEITES...
QUEIMA TUDO.
VIVE A PÁSCOA.
VIVE JESUS CRISTO.
QUE HÁ DE RESTAR EM MIM
PARA ALÉM DE POEIRA
QUE O VENTO DO TEMPO
VAI LEVANDO?