domingo, 7 de novembro de 2010

Cuidar da sementeira!

No domingo 31 de Outubro a Al-Qaeda sequestrou os cristãos que se encontravam a rezar numa igreja de Bagdad; a sua libertação foi conseguida à custa de 50 mortes (um deles sacerdote) e 70 feridos. Entretanto, a Al-Qaeda tornou público que os cristãos do Iraque «são alvos legítimos» dos mujahidin. Em Israel, país de Jesus, os cristãos são espécie rara, muito rara. Estão mesmo em extinção. Como noutras veneráveis regiões.
É ainda recente o martírio dum sacerdote Carmelita na Índia; e de um bispo, algures num país árabe ou de influência árabe. Em muitos outros lugares onde o Cristianismo foi outrora verdejante e florescente já nada mais resta que vazio, pó e areia. Talvez me digam que enquanto configurados como sociedade somos sujeitos ao ciclo natural da vida. Talvez, mas isso não me conforma. Se outrora a história e a espiritualidade cristãs foram grandiosas e flamejantes e agora que se fechou o ciclo já não o são, isso não me conforma. E não me conforma porque o mandato do Senhor — «Ide e anunciai! — continua actual, vigente. E alguém tem hoje de o escutar. E de o levar. E de o transmitir.
O viço da sementeira vai esmaecendo. Havemos, porém, de cuidar dela com zelo. Para isso está, por exemplo, a Semana de oração pelos Seminários.
O que mais me surpreendeu no Guião que para ela nos prepararam, foi o tom confidencial com que o Papa iniciou a sua Carta aos Seminaristas. Conta ele:
«Em Dezembro de 1944, quando fui chamado para o serviço militar, o comandante de companhia perguntou a cada um de nós a profissão que sonhava ter no futuro. Respondi que queria tornar-me sacerdote católico. O subtenente replicou: Nesse caso, convém-lhe procurar outra coisa qualquer; na nova Alemanha, já não há necessidade de padres. Eu sabia que esta «nova Alemanha» estava já no fim e que, depois das enormes devastações causadas por aquela loucura no país, mais do que nunca haveria necessidade de sacerdotes. Hoje, a situação é completamente diversa; porém de vários modos, mesmo em nossos dias, muitos pensam que o sacerdócio católico não seja uma’profissão’ do futuro.»
Vivo com sacerdotes. Quase desde que me conheço que vivo com eles, qual Samuel. Se dos muitos que conheço lhes pedisse algo ‘vocacional’ para aqui escrever, poucos assentiriam. (Estranhamente os sacerdotes são muito relutantes em falar da sua vocação, do laço de sedução em que caíram, da paixão que os rendeu, do basilisco que os cegou, do porquê de continuarem ao serviço, valentes na peleja.)
Não assim o Papa.
(Até podia ser público, mas eu desconhecia aquele arrojo do jovem Ratzinger perante o seu jovem Comandante!)
O Papa com delicada singeleza revelou-nos a aspiração sacerdotal que lhe queimava o seu coração de jovem alemão alistado nas fileiras do exército nazi, e que ele não pode calar ao ser interpelado.
Poucos teriam a sua coragem.

Como escrevo no dia litúrgico de São Carlos Borromeu não posso esquecer que foi o Santo Arcebispo de Milão que criou os seminários e os fundou e fincou na ideia de sementeira. Se é necessário que o semeador semeie a semente da boa palavra, intuiu ele e bem, é também necessária uma boa preparação prévia impondo uma descida ao campo e dali apartar do duro amanho das terras aqueles que mais tarde, qualificados e ungidos, hão-de regressar para nova e mais fecunda sementeira.
Não há como não ver que os seminários se vão. Que as sementeiras vão esmaecendo. Aqui, ali e além as portas fecham-se e não se abrem, ou abrem-se não já para receber sementes!
Entretanto, a fome continua.
Sou dos que confiam que alguma solução há, de que o Espírito faz novas coisas velhas e do carcomido tronco faz brotar esperanças e viços. Entretanto, doem-me os seminários fechados e as sementeiras perdidas, as ovelhas cansadas, desorientadas e sem umas perneiras de restolho para mastigar. E dói-me o pouco jeito e o garrote da modéstia que nos impede de falarmos da nossa alegria de homens felizes e realizados, inventivos, criativos, audazes, generosos, entregues e oferecidos aos outros, à Igreja e a Deus.
É do Evangelho que a luz não é para esconder. Bem sei que não somos a luz do sol, nem talvez a da lua.
Mas algo iluminamos e a Luz apontamos.
E entretanto a tarde decai, a noite galopa, as sombras crescem, aumentam.
E semear segue sendo do mais belo que há, pois a semente pequenina guarda todos matizes da paleta da esperança.
Eu ainda cruzei a fronteira do tempo em que se rezava ao semear. Sei que o meu avó, descalço, se recolhia no rabo da leira mais larga. Era dali que se persignava e os demais calavam como quem respeita o dizer quase secreto de um patriarca bíblico. Só depois se dava a semeadura. Ora, se um rude e inculto labrego de Entre-Douro e Minho rezava antes de semear, e depois com denodo dali arrancava pão saboroso que todos os netos chegámos a provar, não haverá agora, quem bote as mãos e o coração em prece para que não feneça a semente dos seminários e jamais se esgote o Pão sobre os altares?

Chama do Carmo I NS 83 I 07 de Novembro de 2010

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