quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Prestemos atenção uns aos outros

Ontem, 11 de Fevereiro, foi o Dia do Doente.
«Prestemos atenção uns aos outros!» É assim que abre a Mensagem do Papa para a Quaresma que se aproxima. Esta atenção começa com o nosso mais próximo, especialmente aquela ou aquele que nos habituamos a ver sem quase ver. Mas, também, colectivamente, aqueles que são vítimas da nossa omissão, de quem nem sequer nos incomodarmos em olhá-los. Diz o Papa: "A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios".
É bem verdade.
Momentos há em que nos transcendemos. Que nos transformamos e nos vemos a fazer coisas de que sempre disseramos: «Jamé!». Acontecem naquelas situações que de tão desprovidas de humanidade – e tão saturadas de humilhação – nos surpreendem, por alguém as assumir dum fôlego ou dum ímpeto irreprimível.
Assim de repente lembro-me de Francisco de Assis e de Maximiliano Maria Kolbe. Mas há mais exemplos, claro. Estes chegam para compreender a ideia. Vejamos: Francisco Bernardone era o líder da juventude da sua cidade. Alegre, amante da música e das festas. Com muito dinheiro para gastar, rapidamente se tornou um ídolo entre seus compinchas. Adorava banquetes, noitadas de diversão e de cantar serenatas às belas damas da sua cidade. Mas converteu-se e os antigos companheiros chacotearam-no e o pai Pietro enfureceu-se. Em 1206, passeando a cavalo pelas campinas de Assis viu um leproso, que sempre lhe parecera horripilante e repugnante à vista e ao olfato, e cuja presença sempre lhe havia causado invencível nojo. Porém, então, como que movido por uma força superior, apeou-se do cavalo, e, colocando o seu dinheiro naquelas mãos podres e sangrentas, deu ao leproso um beijo de amizade.
Existem concerteza muitos beijos, mas o de Bernardone é único e de todo inesperado.
Séculos mais tarde um filho do pai Francisco tem um gesto parecido. Frei Maximiliano Maria Kolbe estava prisioneiro no inferno de Aushwitz e num acto de inaudita caridade (ou loucura?) ofereceu-se para morrer em vez do sargento Franciszek Gajowniczek, casado e com filhos. E assim foi. E Franciszek sobreviveu ao inferno!
Há gestos assim, cheios de santa loucura! Incompreensíveis, mas que nos devolvem a confiança no ser humano. O beijo nas carnes podres e aquela imolação são tão radicais que mesmo sabendo-as sempre nos surpreendem!
Agora imagine: Imagine que a pessoa que se senta ao seu lado no café, ou aquela que o saúda mui fraternalmente na Missa têm Sida! De futuro que fará você? Vai, gentil, corresponder-lhes? Vai saudá-los e apertar-lhes as mãos? Ou dá por encerrada a fraternidade e muda de café e de igreja? Seremos capazes da ternura de Francisco e da radicalidade de Maximiliano? Por que mirram hoje os seus gestos? Por que são tão áridos os nossos tempos tão alheios à bondade desinteressada?
Poderia continuar, mas o mais interessante será partir para a acção. O mais interessante é a prática concreta do dia a dia.
Ocorre-me esta reflexão porque passou ontem mais um Dia Mundial do Doente. E nada mais triste ser doente nestes duros tempos da tróika. Obrigado a cortar nas gorduras o Estado já quase não faz operações. Mas o Estado não tem dores, não sofre. Logo não sabe reconhecer as dores das pessoas. O Estado sabe de números e de estatísticas, não sabe de dores e de humanidade. Nos relatórios aparecem os números dos desempenhos e o alcance das práticas., mas a burocracia não sente nem sabe ler sufoco, desespero e dor.
E já não é só o Estado, somos também nós. É sabido que na silly season e nas épocas altas os velhos e doentes ficam abandonados sem que alguém os visite. O que importa é tirar uns dias de paz e sossego, ir para longe, ficar fora. Entretanto, os velhos morrem na solidão donde só são resgatados quando cheira a carne podre por todo o prédio; ao mesmo tempo os hospitais apressam altas de doentes que ninguém vai resgatar porque são tropeços em casa e impecilhos de férias há muito pagas.
É por isso que tem razão o Papa quando nos alerta para a crescente insensibilidade e cegueira que nos impedem de atendermos os outros e de beijarmos o sofrimento alheio. É por isso que hoje já quase não percebemos os gestos de Frei Francisco e Frei Maximiliano!
Aqueles que já não funcionam, isto é, os velhos, os nossos velhos decrépitos e os doentes, os que não contribuem para o orçamento familiar e apenas o delapidam, ficam esquecidos a um canto da garagem da memória. E para piorar as coisas, nós, cristãos, já quase não veneramos aquelas palavras de Jesus que antes tanto moviam à piedade e ao respeito pelos frágeis (que todos um dia havemos de ser): «Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos, é a mim que o fazeis!»

Chama do Carmo I NS 136 I Fevereiro 12 2012

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