quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Homilia do funeral da D. Lília (Parte II)

5. Queria partilhar convosco um artigo que escrevi no Mensageiro, após ter estado na Novena Nossa Senhora do Carmo, um artigo que algum de vós conheceis.
6. Afirmou Paulo VI: «as palavras convencem, mas os exemplos arrastam». Compreendi melhor esta afirmação a meados de Julho. Na missão de «pregador» estive na Igreja do Carmo, em Viana do Castelo, a “pregar a novena de Nossa Senhora do Carmo”. Não a ela, mas ao povo! Primeiro escutei a Palavra. Depois confrontei-a com a minha fé e olhei ao meu redor. A seguir, falei ao povo (de Deus)  usando a simbologia das flores para apresentar algumas virtudes de Nossa Senhora e da vida cristã.
Foram nove dias com muita gente. As flores, os símbolos, os cânticos, a procissão pelas ruas da cidade…; tudo serviu para honrar aquela Senhora, que é do Carmo, mas de Deus e de todos os homens também. É Mãe do Menino Jesus. Não o disse a ninguém, mas no fim da procissão perguntava-me: Que tendes Vós, ó Virgem Maria, para atrair tanta gente? Talvez por ter falado tão pouco e ser reconhecida como o melhor exemplo de amor a Deus e à humanidade. Os exemplos arrastam!
7. Contudo, ao lado de tudo isto, também no Carmo, estava uma outra mulher que não ouve nem vê. É cega e surda! Ali está, solitária, no seu quarto. Quem a trata e serve é uma outra mulher, quase solitária, mas acompanhada de grande caridade. Antes de regressar, fui visitar a solitária, cega e surda, pois sei que é uma grande amiga do Menino Jesus de Praga. Depois de me reconhecer pela voz e pelas barbas, fez-me um sermão e disse-me palavras. Na despedida, pelo tacto das mãos, tirou um papel da sua carteira para eu ler. Dizia assim: «Tudo vou sofrer pelo Teu amor. Tudo vou sofrer pelo Teu carinho. Tudo vou sofrer pelo Teu afecto, meu querido Menino Jesus. E assinava o papelito desta maneira: A Tua amiga solitária.»
Foi precisamente esta assinatura que me acompanhou toda a viagem até Avessadas. Quanta gente assim, isto é, amiga solitária do Menino Jesus. Este exemplo arrastou-me até junto de todas as pessoas solitárias, incompreendidas, abandonadas, presas, excluídas, cegas , mudas … Em pensamento, fui até junto das tocas dos eremitas, dos homens e mulheres que optaram pela solidão, pelo silêncio, pela oração, pelo trabalho. Recordei vidas contemplativas, cheias de momentos de solidão, deserto, abandono…E, baixinho, ia dizendo para comigo: olha este, foi mais um dos amigos solitários de Deus, Por acaso, a sabedoria popular interrompia-me para dizer «mais vale sozinho do que mal acompanhado»! Mas com o Menino Jesus, com Deus, ninguém está sozinho nem mal acompanhado!
8. Nesse mesmo dia – o de Nossa Senhora do Carmo (dia 16 de Julho) – participei, à tarde, noutra grande enchente de povo. Era a ordenação de cinco novos presbíteros, no nosso Santuário dedicado ao Menino Jesus. Imagino a azáfama dos meus confrades por estes dias. O certo é que estava tudo muito bonito. A cerimónia decorreu lindamente. Cânticos, abraços, felicitações, prendas…à noite, na paz da minha cela conventual, ao repassar o belo dia que Deus me concedeu viver, vi que tudo volta à solidão. As festas acabam, os dias lindos acontecem de longe a longe. Ou até poucas vezes na vida, mas a beleza da amizade é permanente e quotidiana. Razão tinha o solitário S. João da Cruz, quando escreveu: «A alma que vive no amor não cansa nem se cansa» (D96), anda sempre como que de festa. A questão não é estar só, ser solitário, mas viver no amor. A vocação de um carmelita é ser um amigo forte de Deus, como queria Santa Teresa de Jesus.
«Quando estamos sós, quando somos mais nós próprios, sem subterfúgios nem evasões, é quando Deus se mostra mais perto de nós. Aí fazemos a experiência de Deus como Pai amoroso que nos conhece melhor do que nós nos conhecemos a nós próprios» (J. Tolentino Mendonça».
A todos os amigos solitários do Menino Jesus, sobretudo aos doentes e idosos, deixo este gesto de comunhão e a convicção de que os nossos nomes «estão gravados nas palmas das mãos de Deus» ( Is 49,15-16).
9. A nossa irmã Lília, florzinha de Nossa Senhora do Carmo, já não é muda, já não é surda, já não é solitária. Está perto de Deus e em Deus está em paz, está connosco, com os anjos e santos. E nós partilhamos Deus esta flor cheia da beleza da fé e da amizade.
P. Agostinho Leal

Sem comentários: