sábado, 24 de novembro de 2012

Uma porta, uma mulher, uma fonte


É grande este domingo que encerra o ano cristão, que recolhe todos os dons, todas as canseiras e os oferece a Cristo, Senhor e Rei nosso, rei e senhor de todas as realidades, das nossas vidas, esforços, trabalhos, realizações, da nossa fé, esperança e amor.
Na nossa Igreja do Carmo expomos neste domingo uma tela do pintor José Marques, inspirada na Carta Porta Fidei, de Bento XVI, números 1, 13 e 15. E oferecida à comunidade.
Também publicamos o texto que serviu de cavalete à criatividade do artista.
 

Uma fonte brotando do chão refresca, canta e lava; e uma porta se entreabre. Nunca se fecha. E a fonte nunca se acaba. E se houver uma mulher, que seja hebreia e me sorria junto à porta. A água vai soleira fora, a porta está à entrada e não vejo que haja outra, nem é mister que haja. Por ela entram o herói e o arauto, o monge, o santo, o rei, o meirinho e o menino, o que semeia e o que colhe. A luz, o lodo e o sujo, o leão e o cordeiro, a cobra, o vitelo e o burro.
De que me serve toda a luz do sol e rústicos caminhos abertos pradaria fora se não houver uma fonte que me refresque, me sacie a sede e me baile os ouvidos? De que me servem as montanhas se por entre os segredos das rochas não cantam fontes, não correm ribeiros limpos em que me banhe, onde lave o pó da história que se foi acumulando nas estantes e na armadura? Quero uma fonte e um regato manso onde lave as feridas abertas pelo rascanhar das silvas e dos tojos, onde mermam as dores que me moem. Quero um regato como um bálsamo que me unja o corpo dorido pelos combates e maltratado por nevoeiros de incompreensões.
Mas não quero ficar fechado em casa. Sim, não me prendam em casa por que ousarei voar. Não tenho medo de voar, não tenho medo de ir pois sei que hei-de voltar. Encontrarei algures no meio do mar uma rocha, um poiso, um crâneo onde repousar. Sim, deixem a porta entreaberta para se na volta voltar desvalido não me custe entrar. Lá dentro não preciso nem de lâmpada nem de cama, mas de espaço onde repouse a cabeça junto do altar de Deus. Eu fico ali, porque sei que Ele está lá. A sua presença luminosa é como uma sombra, uma nuvem, que não me incendeia os olhos, e me conforta. Que ali possa ficar até partir de novo, até que as paredes de novo se enfunem ao vento e a barca rompa amarras e se faça de novo ao mar. Não interessa que seja de pedra, que eu não tenho medo que se afunde. Preciso é de um mar que me desafie a navegar sem descanso.
Existem muitos lugares, frequentei muitos portos. Enfrentei tempestades e quase soçobrei na acalmia. E ainda não durmo o fundo do mar. Já fiquei sem mastro e remendei o velame. Mas agora, agora mesmo, do que eu mais tenho saudade é de ali ficar, junto daquele altar que me cheira a pão fresco. É esse cheiro e essa sombra luminosa que ali me atraem e por isso entrarei porta adentro.
Tenha a casa uma mulher. Discreta, sorrindo, nobre de traços, ainda que serviçal de avental. Uma mulher hebreia que respeite o mar mas não o tema. Guarde ela a porta sem medo; uma mulher que ame a porta e quem por ela entre. Uma mulher cujas mãos são mansas e sem brusquidão, que não impeçam quem sai, mesmo que saiam todos! Uma mulher sem medo de servir, sem medo de ficar só, sem medo da espera, sem medo dos que querem entrar a cavalo, protegidos por armaduras, e pelotões com espadas e lanças. Uma mulher que ama a casa e lhe põe flores silvestres. Uma mulher descalça mas não mendiga. Descalça porque a sua casa lhe é confortável e é mais sua quantos mais entrarem. Descalça porque disponível para receber, impreparada para partir. Não irá jamais combater batalhas, governar reinos ou vencer as olímpiadas.
Se houver um copo naquela casa ele está à mão, porque não se nega água a quem passa ou a quem entra, que, juntos, jamais beberão toda aquela eterna fonte que mana e corre mansa porta fora como um rio de águas salubres que fecundará a cidade.
À porta há uma mulher e uma fonte.
Tudo tão feminino e fecundo, que para duro e anguloso é bastante o que resta ausente.
Vinde, peregrinos, não interessa o caminho que levais, mas a sede que trazeis.
 

[PORTA]
«A PORTA DA FÉ, que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira.»
 
[MULHER]
«Pela fé, Maria acolheu a palavra
do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação. À Mãe de Deus, proclamada «feliz porque acreditou» confiamos este tempo de graça.»
 
[AGUA]
«Este caminho tem início no Baptismo,
pelo qual podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da sua própria glória quantos crêem n’Ele.»
 
Chama do Carmo I NS 164 I Novembro 25 2012

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