sábado, 9 de fevereiro de 2013

Um homem que morreu homem

Fora eu político e seria um optimista. (Ao menos no tempo anterior às eleições!) Diria que sim, que sim, que sim, sempre. Mesmo que ao longe já se visse o pó ou o fumo anunciando a chegada do Cavalo da Troika. Mas eu haveria de apregoar que o futuro existe e sorriria a todos, que todos são patriotas e belos e com futuro risonho pela frente. Não veria alguém com defeito, e a eito só veria pessoal com potencial! Precisasse eu de ser eleito e era o que diria. Precisasse de agradar a superiores ou a associados e a colaboradores, diria que todos são uns amores. Seria tudo na maior.
A exigência seria para os demais; para mim e para os próximos, o El Dorado. Mas afinal, nem eu negaria a lei geral que afirma que o futuro é imprevisível, e nem sequer sorri sempre aos escolhidos. Tudo será fácil, tudo será permitido, todos lá hão-de chegar é uma promessa que nem sempre se deve dar. Mas alguns chegam sem ninguém esperar...
Desculpem que vos fale de um morto. Bem, já não é bem um morto, porque ressuscitou. Mas na minha memória e na de alguns está tudo tão fresco, que ele ainda está morto.
Toda a morte chega sem aviso, mesmo que de  há meses seja visível na cara a segadeira da morte. (Mas, enfim, nunca ninguém se crê maduro e pronto para a ceifa, embora o tempo para todos passe e cada vez mais nítido vejamos a reluzente ferramenta à porta, quando não à cabeceira!)
Quando entro na igreja para rezar, e visto que normalmente fico de frente para a assembleia, eu rezo e canto e falo e vejo e oiço. Existem, por isso, rostos que me são familiares, pois, diária ou semanalmente, me acompanham durante um pedaço de caminho em que rezo publicamente, e eu com eles, sem deles nem o nome nem nada saber. Acontece.
E aconteceu. Determinado rapaz vinha rezar a determinada Missa do Carmo. Não havia nele razão alguma para nele reparar a não ser os seus cabelos grandes, mas não tão grandes como a sua serenidade e a sua paz, a sua devoção escorreita, a postura digna e serena e até o seu correcto sentido de comunidade.
Vinha também rezar o Mês de Maio.
Em Setembro de 2011 veio falar comigo. E fiquei a conhecer a jóia de rapaz que ele era. Chamava-se Vítor, tinha iniciado os trintas mas parecia mais velho. Contou-me a história, longa história. Uma história daquelas em que perdemos o amor às horas e ficamos a ouvir.
Sentira o apelo para fazer o Crisma. Já o sentira antes, mas agora que ouvira o convite a inscrever-se na formação próxima quis ver se era possível para ele também. Era. Pus-lhe uma condição; e em boa hora lha pus: que fosse à Comunidade de Inserção — era um utente do GAF! — e trouxesse um amigo que julgasse escorreito. Ele foi e trouxe o Bruno. Desde aquele dia julguei que deveria ser confirmado na fé: O homem era um missionário!
Esta foi a sua história que ele me contou e eu dispo de pormenores para caber na folha.
Fora drogado, consumidor de drogas duras durante 15 anos. Por isso parecia tão velho! O percurso da sua vida, ainda que alienado e estuporado, fez-lhe ver que aquilo não ia bem. Mas quem daria mão, pensava ele, a um trapo mau e drogado? Um dia convenceu-se e encaminhou-se para a Segurança Social. Disseram-lhe ali que solução solução, só na Comunidade de Inserção mas que esperasse sentado. Se tinha problemas com os consumos o problema era dele. O dia viria quando viesse.
E um dia o dia chegou. E deu entrada na Comunidade. As coisas não vinham muito direitas, mas havia motivação e isso ajudou. Foi aí que voltou à Missa, e a rezar. A trabalhar e a ganhar o seu salário. E pouco a pouco a querer ser mais de Jesus. E a crismar-se.
De todos os encontros falhou um ou dois. Coisa de somenos. Achei-o engraçado, motivado, conhecedor das coisas da Igreja, envolvido com Jesus, a gostar das coisas que sabemos que Ele gosta, e dos Seus amigos.
Um dia fomos todos para retiro, para a Casa do Menino Jesus. Foi para Ele um encanto maior que umas férias em Acapulco de Juaréz! Veio esfusiante. Entretanto, chegou a Páscoa e teve uma recaída. Eu temi. Re-encontrei-o e ele confessou-se. Todos sabemos que quem é picado por tal cobra lhe fica sempre com um dívida! Por fim, chegou Pentecostes, o dia do Crisma, e ele lá foi solene e solene se apresentou com o Padrinho ao Bispo.
(E como ele gostou do abraço do Bispo!)
Uns meses depois assaltou-o um cancro. Andou por ali num seria não seria. Era e era mesmo. Deixou de trabalhar e apresentava-se pontualmente às consultas. Mas não havia mesmo nada a fazer. E não houve...
Em cinco meses foi-se. Foi-se sem queixas, embora não compreendesse (nem eu, nem muitos!) porque tinha de ir-se, porque tinha de abandonar a filha, logo agora «que estava a endireitar-se e podia ajudá-la a crescer!».
Porque têm de suceder as coisas assim? Porque é que Quem tem a chave da arca destes segredos assim faz as coisas? Porque é que não nos diz nada, ou pelo menos não o diz em alfabeto que entendamos?
Ontem fomos a Santa Marta de Portuzelo enterrar o seu corpo. A igreja não encheu, mas eu já vi o Bispo a presidir lá a uma festa e a igreja também não encheu!
Ontem fomos a Santa Marta. Eu vi lá o Pároco Pe Valdemiro, as Irmandades, o Grupo Coral, os Ministros e os Leitores, o Juiz da Cruz, e as gentes garbosas e chorosas de Santa Marta. Eu vi a família, menos o pai que morrera há vinte e oito dias. E vi o Carmo Jovem, o Gaf e a Comunidade de Inserção. E mais um outro punhado de amigos.
Cada um a seu jeito lhe prestou homenagem e preito. Mereceu-o. E nós também.
No dia seis enterrámos um homem que não foi sempre bom. Mas que nos deixou a lição de que é possível erguer-se do chão ou do abismo do erro e do lameiro da autodestruição, e voltar a ser homem e cidadão, pai e fiel da Igreja. Não me peçam que explique o milagre. Eu só sei que o milagre aconteceu e que nós nos apercebemos dele demasiado tarde! Infelizmente somos assim, de umbigos exageradamente grandes! Tão grandes que não dá para ver o milagre a acontecer quando ele acontece!
Deus a quem entreviste na terra e na terra achaste razões para O amar e conhecer, te recompense, a ti, Vítor Hugo Meixedo Moreira, a quem deveríamos agradecer por nos teres mostrado o milagre de ser homem imperfeito, mas homem. Homem santo de talha inacabada. Missionário e intercessor. A ti não te colocarão nunca num altar, mas os que precisarem de mudar, olhem bem para ti, porque foste e vieste a ser modelo; e te recordem como homem de garra e mudança para o bem. Porque sim, porque, afinal, o triunfo está mesmo ao nosso alcance! Digo-o eu que não sou político nem publicitário. Digo-o eu que vi morrer um homem (imperfeito) como homem!

Chama do Carmo I NS 175 I Fevereiro 10 2013

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu ainda o sinto morto - mas isso é da minha pequenez e cegueira. O Vitor foi tudo o que aqui genuinamente está escrito, mas foi mais, muito mais. O no altar dos que amo e já não tenho também está o Vitor. Que morreu Homem, Homem grande, porque só esses sabem estender a mão como ele fazia. Saudades. Jana.